Morreu na
última quinta-feira, aos 87 anos, o escritor e jornalista colombiano Gabriel
García Márquez.
García
Márquez estava em casa e lutava contra um câncer linfático desde 1999. Ele
ficou internado com pneumonia e infecção respiratória na Cidade do México, onde
morava, entre o fim de março e início de abril.
Em
homenagem à memória desse brilhante artista das letras, Prêmio Nobel de
Literatura de 1982, e à sua importante contribuição ao jornalismo mundial,
nosso blog reproduz o discurso de Márquez sobre a formação do novo jornalista,
e que foi publicado no dia 18 de abril no site Observatório da Imprensa.
A melhor profissão do mundo
Por Gabriel Garcia Márquez
"Há uns cinquenta anos não estavam na
moda escolas de jornalismo. Aprendia-se nas redações, nas oficinas, no botequim
do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma
fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de
participação no qual a moral era conservada em seu lugar."
"Não haviam sido instituídas as reuniões
de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo mundo fazia uma
pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da
redação para tomar café. Era uma tertúlia aberta em que se discutiam a quente
os temas de cada seção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte.
Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e
quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa,
era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na realidade não o
eram."
O jornal cabia então em três grandes seções:
notícias, crônicas e reportagens, e notas editoriais. A seção mais delicada e
de grande prestígio era a editorial. O cargo mais desvalido era o de repórter,
que tinha ao mesmo tempo a conotação de aprendiz e de ajudante de pedreiro. O
tempo e a profissão mesma demonstraram que o sistema nervoso do jornalismo
circula na realidade em sentido contrário. Dou fé: aos 19 anos, sendo o pior
dos estudantes de direito, comecei minha carreira como redator de notas
editoriais e fui subindo pouco a pouco e com muito trabalho pelos degraus das
diferentes seções, até o nível máximo de repórter raso.
A prática da profissão, ela própria, impunha a
necessidade de se formar uma base cultural, e o ambiente de trabalho se
encarregava de incentivar essa formação. A leitura era um vício profissional.
Os autodidatas costumam ser ávidos e rápidos, e os daquele tempo o fomos de
sobra para seguir abrindo caminho na vida para a melhor profissão do mundo -
como nós a chamávamos. Alberto Lleras Camargo, que foi sempre jornalista e duas
vezes presidente da Colômbia, não tinha sequer o curso secundário.
A criação posterior de escolas de jornalismo
foi uma reação escolástica contra o fato consumado de que o ofício carecia de
respaldo acadêmico. Agora as escolas existem não apenas para a imprensa escrita
como para todos os meios inventados e por inventar. Mas em sua expansão
varreram até o nome humilde que o ofício teve desde suas origens no século XV,
e que agora não é mais jornalismo, mas Ciências da Comunicação ou Comunicação
Social.
O resultado não é, em geral, alentador. Os
jovens que saem desiludidos das escolas, com a vida pela frente, parecem
desvinculados da realidade e de seus problemas vitais, e um afã de protagonismo
prima sobre a vocação e as aptidões naturais. E em especial sobre as duas
condições mais importantes: a criatividade e a prática.
Em sua maioria, os formados chegam com
deficiências flagrantes, têm graves problemas de gramática e ortografia, e
dificuldades para uma compreensão reflexiva dos textos. Alguns se gabam de
poder ler de trás para frente um documento secreto no gabinete de um ministro,
de gravar diálogos fortuitos sem prevenir o interlocutor, ou de usar como
notícia uma conversa que de antemão se combinara confidencial.
O mais grave é que tais atentados contra a
ética obedecem a uma noção intrépida da profissão, assumida conscientemente e
orgulhosamente fundada na sacralização do furo a qualquer preço e acima de
tudo. Seus autores não se comovem com a premissa de que a melhor notícia nem
sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor. Alguns,
conscientes de suas deficiências, sentem-se fraudados pela faculdade onde
estudaram e não lhes treme a voz quando culpam seus professores por não lhes
terem inculcado as virtudes que agora lhes são requeridas, especialmente a
curiosidade pela vida.
É certo que tais críticas valem para a
educação geral, pervertida pela massificação de escolas que seguem a linha
viciada do informativo ao invés do formativo. Mas no caso específico do
jornalismo parece que, além disso, a profissão não conseguiu evoluir com a
mesma velocidade que seus instrumentos e os jornalistas se extraviaram no
labirinto de uma tecnologia disparada sem controle em direção ao futuro.
Quer dizer: as empresas empenharam-se a fundo
na concorrência feroz da modernização material e deixaram para depois a
formação de sua infantaria e os mecanismos de participação que no passado
fortaleciam o espírito profissional. As redações são laboratórios assépticos
para navegantes solitários, onde parece mais fácil comunicar-se com os
fenômenos siderais do que com o coração dos leitores. A desumanização é
galopante.
Não é fácil aceitar que o esplendor
tecnológico e a vertigem das comunicações, que tanto desejávamos em nossos
tempos, tenham servido para antecipar e agravar a agonia cotidiana do horário
de fechamento.
Os principiantes queixam-se de que os editores
lhes concedem três horas para uma tarefa que na hora da verdade é impossível em
menos de seis, que lhes encomendam material para duas colunas e na hora da
verdade lhes concedem apenas meia coluna, e no pânico do fechamento ninguém tem
tempo nem ânimo para lhes explicar por que, e menos ainda para lhes dizer uma
palavra de consolo.
'Nem sequer nos repreendem', diz um repórter
novato ansioso por ter comunicação direta com seus chefes. Nada: o editor, que
antes era um paizão sábio e compassivo, mal tem forças e tempo para sobreviver
ele mesmo ao cativeiro da tecnologia.
A pressa e a restrição de espaço, creio,
minimizaram a reportagem, que sempre tivemos na conta de gênero mais brilhante,
mas que é também o que requer mais tempo, mais investigação, mais reflexão e um
domínio certeiro da arte de escrever. É, na realidade, a reconstituição
minuciosa e verídica do fato. Quer dizer: a notícia completa, tal como sucedeu
na realidade, para que o leitor a conheça como se tivesse estado no local dos
acontecimentos.
O gravador é culpado pela glorificação viciosa
da entrevista. O rádio e a televisão, por sua própria natureza, converteram-na
em gênero supremo, mas também a imprensa escrita parece compartilhar a ideia
equivocada de que a voz da verdade não é tanto a do jornalista que viu como a
do entrevistado que declarou. Para muitos redatores de jornais, a transcrição é
a prova de fogo: confundem o som das palavras, tropeçam na semântica, naufragam
na ortografia e morrem de enfarte com a sintaxe.
Talvez a solução seja voltar ao velho bloco de
anotações, para que o jornalista vá editando com sua inteligência à medida que
escuta, e restitua o gravador a sua categoria verdadeira, que é a de testemunho
inquestionável. De todo modo, é um consolo supor que muitas das transgressões
da ética, e outras tantas que aviltam e envergonham o jornalismo de hoje, nem
sempre se devem à imoralidade, mas igualmente à falta de domínio do ofício.
Talvez a desgraça das faculdades de
Comunicação Social seja ensinar muitas coisas úteis para a profissão, porém
muito pouco da profissão propriamente dita. Claro que devem persistir em seus
programas humanísticos, embora menos ambiciosos e peremptórios, para ajudar a
constituir a base cultural que os alunos não trazem do curso secundário.
Entretanto, toda a formação deve se sustentar
em três vigas mestras: a prioridade das aptidões e das vocações, a certeza de
que a investigação não é uma especialidade dentro da profissão, mas que todo
jornalismo deve ser investigativo por definição, e a consciência de que a ética
não é uma condição ocasional, e sim que deve acompanhar sempre o jornalismo,
como o zumbido acompanha o besouro.
O objetivo final deveria ser o retorno ao
sistema primário de ensino em oficinas práticas formadas por pequenos grupos,
com um aproveitamento crítico das experiências históricas, e em seu marco
original de serviço público. Quer dizer: resgatar para a aprendizagem o
espírito de tertúlia das cinco da tarde.
Um grupo de jornalistas independentes estamos
tratando de fazê-lo, em Cartagena de Índias, para toda a América Latina, com um
sistema de oficinas experimentais e itinerantes que leva o nome nada modesto de
Fundação do Novo Jornalismo Ibero-Americano. É uma experiência piloto com
jornalistas novos para trabalhar em alguma especialidade - reportagem, edição,
entrevistas de rádio e televisão e tantas outras - sob a direção de um veterano
da profissão.
A mídia faria bem em apoiar essa operação de
resgate. Seja em suas redações, seja com cenários construídos intencionalmente,
como os simuladores aéreos que reproduzem todos os incidentes de voo, para que
os estudantes aprendam a lidar com desastres antes que os encontrem de verdade
atravessados em seu caminho. Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só
se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade.
Quem não sofreu essa servidão que se alimenta
dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação
sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não
pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e
esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível
e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre,
mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais
ardor do que nunca no minuto seguinte”.
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